sexta-feira, outubro 22, 2010

É saudade.


Sim, vou generalizar: o ser humano só dá valor para algumas situações de vida quando elas já estão fora de seu alcance, afastadas pelo tempo ou pela distância. O presente ofusca qualquer tentativa de compreensão ou valoração do sentimento.

A saúde tem muito mais valor quando se está doente. O dinheiro tem muito mais importância quando não se o tem. Aquele amigo faz falta quando não está mais por perto. Um problema deixa de ser um problema quando você se afasta dele o suficiente. Aquele dia de verão em casa sem fazer nada parece muito mais interessante dez anos depois do que quando foi vivido intensamente. A música que tocou no dia em que você a conheceu geralmente só ganha importância se você não a tem mais ou se a tem à distância. Um amor dilacera o coração quando separado por quilômetros de distância.

A nostalgia se consagra com o tempo. A distância revela a importância.

domingo, outubro 10, 2010

O Nada Nosso De Cada Dia (ou Il Dolce Far Niente).


Domingo.

Hoje eu acordei devagar, lento. Levantei-me vagarosamente e sentei-me à beira da cama. O relógio piscava em verde reluzente: meio-dia e quinze. Acendi o abajur. Esfreguei os olhos sem vigor. Preguiça, eu pensei. Ainda inebriado pelos sonhos recém interrompidos, melancolicamente afastei a cortina e deixei a claridade invadir o quarto. Abri a janela menos de um palmo, apenas o suficiente para que o ar fresco pudesse invadir o ambiente. Olhei para a cama, que, mesmo desarrumada, ainda se insinuava para mim bastante aconchegante. Resisti bravamente e segui até o banheiro. Sem acender a luz, olhei-me no espelho – o mais traiçoeiro dos objetos, pois desnuda os sonhos ao mostrar nada mais do que a realidade. Há quem diga que os sonhos são esquecidos no momento em que se olha no espelho pela manhã, logo após acordar. Faz sentido. Não há maior choque de realidade do que se olhar no espelho. Dei de ombros. Escovei os dentes indolentemente e fui pensando nos planos para o dia. Que planos? Nada programado. Dia livre para fazer o que quiser! Qualquer coisa. Um mundo de opções, possibilidades, alternativas, escolhas. Enxagüei a boca e voltei para o quarto. A cama continuava convidativa e antes que eu sucumbisse a ela, guardei as cobertas, os travesseiros, tirei o lençol e até o colchão. Eu sabia que medidas drásticas eram necessárias naquele momento.

Olhei ao redor e fixei os olhos na janela. O sol brilhava alto: meio-dia e cinqüenta. Então a dúvida de toda pessoa que acorda após o meio-dia passou a consumir os meus pensamentos. Tomar café da manhã ou almoçar? Minha mente se preencheu com essa dúvida. De um lado, o café da manhã tardio atrasa toda a programação do dia, porque empurra o horário de todas as demais refeições para mais tarde. De outro lado, almoçar logo ao levantar nem sempre é prazeroso, pois o corpo ainda está preguiçoso demais para uma refeição completa. A dúvida persistiu. Segui em direção à cozinha, confiante que ao percorrer o curto trajeto que a separa do meu quarto eu decidiria. A vida é feita de decisões constantes e inconscientes. Porém, a necessidade de refletir melhor sobre algo em específico torna a tomada de decisão muito mais complexa. São muitas as variáveis. A indecisão. Ah, a indecisão! Enquanto eu refletia sobre tudo isso, inconscientemente abri o armário e peguei o cereal. Na geladeira, peguei o leite, o arroz e o feijão com frango. Joguei açúcar no cereal e adicionei o leite. Esquentei o que precisava ser esquentado. Fui de cereal com leite, arroz e feijão com frango. Enquanto eu considerava as possibilidades, a fome decidiu por mim. Decisão salomônica, nada ortodoxa.

Fui à varanda e sentei-me na rede. O sol brilhava atrás das nuvens: duas e quarenta da tarde. Espreguicei-me. Passei a admirar a paisagem. Fiz-me de espectador. Todo arredor era cenário para o teatro particular que se encenava a minha frente. Meus olhos displicentemente acompanhavam o movimento. Pessoas falavam enquanto caminhavam; jogavam papo para o ar. Meus ouvidos captavam as conversas e minha imaginação as emendava uma na outra, formando diálogos únicos e exclusivos. Uma brisa soprou suave. Preguiça, eu murmurei ao bocejar. Recostei-me na rede e reparei que não havia sequer uma nuvem no céu. O sol estava fora do meu campo de visão. Adiante, uma imensidão azul brilhante e infinita. Deitei na rede. Fechei os olhos para admirar a vermelhidão das minhas pálpebras. Sem muito esforço, cochilei.

Acordei de sobressalto. Onde estou? O sol brilhava laranja: sete e vinte da noite. Desmontei da rede e me joguei no chão, meu corpo ainda sonolento demais para sustentar-se em pé. O piso gelado foi me despertando aos poucos até que levantei. Entrei em casa a passos lentos, ainda letárgico. Tropecei no jornal durante o caminho até a sala. Levei-o comigo. Sentei na poltrona e passei a ler as notícias do dia. Cansei rapidamente, de tão enfadonhas que eram. Busquei um livro na prateleira e comecei a lê-lo. Macunaíma de Mário de Andrade. Um sorriso maroto brotou no canto de meus lábios. Apropriado, eu ponderei. Ai, que preguiça!