quarta-feira, fevereiro 22, 2017

um depoimento, atualizado: eu vivo em são paulo sem carro (e prefiro assim)

sou paulistano nato. nascido e criado em são paulo. aprendi desde cedo a gostar dessa cidade. viver em são paulo é estressante; viver em são paulo e se locomover só de carro é ainda mais. eu percebi isso depois que comprei meu primeiro carro e passei a utilizá-lo como principal meio de transporte. tinha vinte e dois anos. antes disso, lembro-me de usar transporte público desde sempre. quando criança, morava no jaguaré e íamos até a vila mariana de ônibus para ir à escola. a linha verde do metrô ainda não existia. era uma viagem todos os dias. lembro principalmente dos retornos, sempre tarde da noite, minha mãe, minha irmã e eu em um ônibus lotado. a ingenuidade da infância nos permitia cantar a viagem inteira. "motorista, motorista; olha a pista, olha a pista". não sei como os demais passageiros aguentavam. depois, acabamos mudando para a vila mariana. lembro da primeira vez que meus pais nos  deixaram ir sozinhos para a escola de ônibus. acho que eu tinha onze anos e minha irmã dez. era um trecho curto, menos de um quilômetro, que representava uma responsabilidade imensa. durante a adolescência, usávamos muito o metrô e o ônibus também. tínhamos bastante liberdade de sair com amigos e ir para praticamente todos os lugares. os passes de ônibus que sobravam sempre viravam dinheiro nos carrinhos de pipoca. já no ensino médio, lembro-me de alguns amigos e eu matarmos uma manhã de aula para passear por são paulo. tudo de metrô. chegamos a pegar a linha azul na estação santa cruz e viajamos até santana, só para voltar até a estação paraíso e caminhar pela avenida paulista inteira sentido consolação. nessa época já havia a linha verde, mas nossa diversão era matar aula e o tempo andando pela avenida mais famosa de são paulo. depois, na época de curso pré-universitário, era metrô todos os dias logo cedo. foi uma época boa. sempre voltava para casa acompanhado da minha, então futura, hoje ex, esposa. foi nesse trajeto diário entre o curso na estação são joaquim até a estação vila mariana que nos conhecemos melhor e, depois de muitas discussões, finalmente acabamos juntos (e nos separamos; quinze anos já se passaram desde então). durante a faculdade, eu e minha irmã dividíamos o carro. era assim: nós dois estudávamos nas perdizes; ela de manhã e eu à noite. logo cedo, ela pegava o carro e ia para a aula. deixava estacionado em uma garagem e voltava de transporte público ou carona para casa. eu estagiava no centro de são paulo nessa época e ia para a faculdade no fim do dia de carona ou de ônibus. depois da aula, buscava o carro na garagem e voltava para casa. fizemos isso durante uns dois ou três anos. foi por essa época que percebi como usar o carro como principal meio de transporte não é somente estressante, mas também extremamente alienante. tinha vinte e dois anos e estava com um carro novo, recém-comprado. um sonho. logo me acostumei com esse conforto. é fácil: meu carro, minha música, meu ar-condicionado. minha ilha, meu mundo. e isso realmente faz a gente se sentir importante. mas os anos foram passando e eu me sentia um idiota toda vez que os carros iam mais devagar que as pessoas caminhando; toda vez que eu percebia que, no fim, estava em uma ilha de conforto, sozinho, sem interagir com ninguém, isolado do mundo e da cidade; toda vez que eu me tornava uma pessoa mais agressiva do que me considero e me irritava com outros motoristas e pedestres. isso tudo me incomodava muito, mas eu me sentia preso àquilo. era o padrão e ainda tinha o status de ter o seu próprio carro. algo um tanto quanto provinciano para alguém nascido e criado em uma cidade que se diz tão cosmopolita. alguns anos passaram e, então, tive a oportunidade de morar em londres para estudar. vender meu carro foi a maior liberdade que eu senti. voltei catorze meses depois e decidi que não usaria mais carro no meu dia a dia. cinco anos se passaram desde então e segui, firme e forte, indo e voltado todos os dias de transporte público. de manhã, caminhava até a estação chácara klabin, fazia baldeação na estação consolação para a estação paulista, descia na estação faria lima e pegava algum ônibus que ia sentido itaim bibi. descia na avenida faria lima, um ponto antes da rua tabapuã. na volta, pegava um ônibus na avenida tabapuã e ia direto até a estação vila mariana ou pegava algum dos ônibus que sobem a rua augusta até o metrô consolação e, de lá, metrô até em casa. adaptei toda minha rotina para isso. usava tênis para as caminhadas, sempre levava um livro comigo e música. quando saía muito tarde do trabalho e não tinha ônibus disponível, eu ia de táxi. já teve dias que caminhei oito quilômetros desde a avenida faria lima até a chácara klabin porque o trânsito estava insuportavelmente parado. fui feliz. senti até um prazer de ver todo mundo parado e eu, dessa vez, era o pedestre caminhando mais rápido que os carros. durante um tempo, já fiz uso das bicicletas compartilhadas, de modo experimental. minha maior dificuldade quanto a isso era logística, pois trabalho com roupa social formal e não tenho um local adequado para me trocar. teve um dia, então - na quarta-feira de cinzas do carnaval de 2016 - que eu resolvi pegar a minha bicicleta e ir pro trabalho pedalando, de roupa social e tudo. foi tranquilo. cheguei em muito menos tempo que conseguiria fazer esse mesmo trecho no horário de pico da manhã, seja de carro, seja de transporte público. passei a usar a bicicleta no meu dia a dia e me adaptei completamente a essa escolha. na ida, vou de roupa social formal, na volta, eu me troco e volto pedalando mais forte. é o meu exercício diário. isso me possibilita passar pelo parque do ibirapuera todos os dias, de manhã e à noite, porque é parte do meu caminho para o trabalho e da minha volta para casa. nesse meio tempo, meu filho nasceu e eu já o incentivo a usar o metrô e a bicicleta. ele adora. o carro fica na garagem e só sai em dias de chuva ou viagens mais compridas. eu tenho consciência que morar na região central da cidade facilita muito a minha vida. tenho inúmeras opções para ir de um lugar ao outro. sei que a maioria dos moradores de são paulo que moram em regiões mais afastadas não têm esse mesmo privilégio. acredito, porém, que é possível, sim, viver sem carro em são paulo. com algumas adaptações e, principalmente, criando-se a consciência coletiva de que o transporte público é melhor, mais rápido e mais agradável para todos, e de que a bicicleta é, sim, um meio alternativo completamente viável, ainda mais com maior consciência dos motoristas, dos ciclistas, dos pedestres, e com mais ciclovias e sinalização viária. com certeza muita coisa pode ser melhorada. por exemplo, a maioria dos motoristas de ônibus andam tão pressionados pelas empresas ou pela prefeitura em cumprir horários (ou simplesmente são mal preparados e mal educados) que esquecem que estão transportando pessoas: aceleram rápido demais, param com tudo, andam acima do limite de velocidade, desrespeitam sinais de trânsito, outros motoristas e, principalmente, os ciclistas etc. isso precisa mudar. também acho que os pontos de ônibus são contra-intuitivos e muito próximos uns dos outros. as pessoas podem andar mais; não precisa ter um ponto em cima do outro. além disso, o desrespeito com os ciclistas é gritante. ser ciclista e ser xingado no trânsito faz parte do pacote de cortesia do motorista paulistano, esse cordial. hoje, cinco anos depois de voltar para são paulo e de me locomover pela cidade por transporte público e de bicicleta no meu dia a dia, tenho certeza que essas são melhores opções. tive muitos benefícios pessoais desde que decidi por esse caminho e acredito que a cidade pode se beneficiar com uma mudança de consciência que passe a privilegiar a locomoção em massa em detrimento do veículo particular. é o que espero para o futuro.

(atualização de texto publicado originalmente em 12 de setembro de 2013)