sou
paulistano nato. nascido e criado em são paulo. aprendi desde cedo a
gostar dessa cidade. viver em são paulo é estressante; viver em são
paulo e se locomover só de carro é ainda mais. eu percebi isso depois
que comprei meu primeiro carro e passei a utilizá-lo como principal meio
de transporte. tinha vinte e dois anos. antes disso, lembro-me de usar
transporte público desde sempre. quando criança, morava no jaguaré e
íamos até a vila mariana de ônibus para ir à escola. a linha verde do
metrô ainda não existia. era uma viagem todos os dias. lembro
principalmente dos retornos, sempre tarde da noite, minha mãe, minha
irmã e eu em um ônibus lotado. a ingenuidade da infância nos permitia
cantar a viagem inteira. "motorista, motorista; olha a pista, olha a
pista". não sei como os demais passageiros aguentavam. depois, acabamos
mudando para a vila mariana. lembro da primeira vez que meus pais nos
deixaram ir sozinhos para a escola de ônibus. acho que eu tinha onze
anos e minha irmã dez. era um trecho curto, menos de um quilômetro, que
representava uma responsabilidade imensa. durante a adolescência,
usávamos muito o metrô e o ônibus também. tínhamos bastante liberdade de
sair com amigos e ir para praticamente todos os lugares. os passes de
ônibus que sobravam sempre viravam dinheiro nos carrinhos de pipoca. já
no ensino médio, lembro-me de alguns amigos e eu matarmos uma manhã de
aula para passear por são paulo. tudo de metrô. chegamos a pegar a linha
azul na estação santa cruz e viajamos até santana, só para voltar até a
estação paraíso e caminhar pela avenida paulista inteira sentido
consolação. nessa época já havia a linha verde, mas nossa diversão era
matar aula e o tempo andando pela avenida mais famosa de são paulo.
depois, na época de curso pré-universitário, era metrô todos os dias
logo cedo. foi uma época boa. sempre voltava para casa acompanhado da
minha, então futura, hoje ex,
esposa. foi nesse trajeto diário entre o curso na estação são joaquim
até a estação vila mariana que nos conhecemos melhor e, depois de muitas
discussões, finalmente acabamos juntos (e nos separamos; quinze anos
já se passaram desde então). durante a faculdade, eu e minha irmã
dividíamos o carro. era assim: nós dois estudávamos nas perdizes; ela de
manhã e eu à noite. logo cedo, ela pegava o carro e ia para a aula.
deixava estacionado em uma garagem e voltava de transporte público ou
carona para casa. eu estagiava no centro de são paulo nessa época e ia
para a faculdade no fim do dia de carona ou de ônibus. depois da aula,
buscava o carro na garagem e voltava para casa. fizemos isso durante uns
dois ou três anos. foi por essa época que percebi como usar o carro
como principal meio de transporte não é somente estressante, mas também
extremamente alienante. tinha vinte e dois anos e estava com um carro
novo, recém-comprado. um sonho. logo me acostumei com esse conforto. é
fácil: meu carro, minha música, meu ar-condicionado. minha ilha, meu
mundo. e isso realmente faz a gente se sentir importante. mas os anos
foram passando e eu me sentia um idiota toda vez que os carros iam mais
devagar que as pessoas caminhando; toda vez que eu percebia que, no fim,
estava em uma ilha de conforto, sozinho, sem interagir com ninguém,
isolado do mundo e da cidade; toda vez que eu me tornava uma pessoa mais
agressiva do que me considero e me irritava com outros motoristas e
pedestres. isso tudo me incomodava muito, mas eu me sentia preso àquilo.
era o padrão e ainda tinha o status de ter o seu próprio carro. algo um
tanto quanto provinciano para alguém nascido e criado em uma cidade que
se diz tão cosmopolita. alguns anos passaram e, então, tive a
oportunidade de morar em londres para estudar. vender meu carro foi a
maior liberdade que eu senti. voltei catorze meses depois e decidi que
não usaria mais carro no meu dia a dia. cinco
anos se passaram desde então e segui, firme e forte, indo e voltado
todos os dias de transporte público. de manhã, caminhava até a estação
chácara klabin, fazia baldeação na estação consolação para a estação
paulista, descia na estação faria lima e pegava algum ônibus que ia sentido
itaim bibi. descia na avenida faria lima, um ponto antes da rua tabapuã.
na volta, pegava um ônibus na avenida tabapuã e ia direto até a estação
vila mariana ou pegava algum dos ônibus que sobem a rua augusta até o metrô consolação e, de lá, metrô até em casa. adaptei toda minha rotina para isso. usava tênis para as caminhadas, sempre levava um
livro comigo e música. quando saía muito tarde do trabalho e não tinha
ônibus disponível, eu ia de táxi. já teve dias que caminhei oito
quilômetros desde a avenida faria lima até a chácara klabin porque o
trânsito estava insuportavelmente parado. fui feliz. senti até um prazer
de ver todo mundo parado e eu, dessa vez, era o pedestre caminhando
mais rápido que os carros. durante um tempo, já fiz uso das bicicletas
compartilhadas, de modo experimental. minha maior dificuldade quanto a isso era logística, pois
trabalho com roupa social formal e não tenho um local adequado para me
trocar. teve um dia, então - na quarta-feira de cinzas do carnaval de 2016 - que eu resolvi pegar a minha bicicleta e ir pro trabalho pedalando, de roupa social e tudo. foi tranquilo. cheguei em muito menos tempo que conseguiria fazer esse mesmo trecho no horário de pico da manhã, seja de carro, seja de transporte público. passei a usar a bicicleta no meu dia a dia e me adaptei completamente a essa escolha. na ida, vou de roupa social formal, na volta, eu me troco e volto pedalando mais forte. é o meu exercício diário. isso me possibilita passar pelo parque do ibirapuera todos os dias, de manhã e à noite, porque é parte do meu caminho para o trabalho e da minha volta para casa. nesse meio tempo, meu filho nasceu e eu já o incentivo a usar o metrô e a bicicleta. ele adora. o carro fica na garagem e só sai em dias de chuva ou viagens mais compridas. eu
tenho consciência que morar na região central da cidade facilita muito a
minha vida. tenho inúmeras opções para ir de um lugar ao outro. sei que
a maioria dos moradores de são paulo que moram em regiões mais
afastadas não têm esse mesmo privilégio. acredito, porém, que é
possível, sim, viver sem carro em são paulo. com algumas adaptações e,
principalmente, criando-se a consciência coletiva de que o transporte
público é melhor, mais rápido e mais agradável para todos, e de que a bicicleta é, sim, um meio alternativo completamente viável, ainda mais com maior consciência dos motoristas, dos ciclistas, dos pedestres, e com mais ciclovias e sinalização viária. com certeza
muita coisa pode ser melhorada. por exemplo, a maioria dos motoristas de
ônibus andam tão pressionados pelas empresas ou pela prefeitura em
cumprir horários (ou simplesmente são mal preparados e mal educados) que
esquecem que estão transportando pessoas: aceleram rápido demais, param
com tudo, andam acima do limite de velocidade, desrespeitam sinais de
trânsito, outros motoristas e, principalmente, os ciclistas etc. isso
precisa mudar. também acho que os pontos de ônibus são contra-intuitivos
e muito próximos uns dos outros. as pessoas podem andar mais; não
precisa ter um ponto em cima do outro. além disso, o desrespeito com os ciclistas é gritante. ser ciclista e ser xingado no trânsito faz parte do pacote de cortesia do motorista paulistano, esse cordial. hoje,
cinco anos depois de voltar para são paulo e de me locomover pela cidade
por transporte público e de bicicleta no meu dia a dia, tenho certeza que essas são melhores opções. tive muitos benefícios pessoais desde que decidi por esse
caminho e acredito que a cidade pode se beneficiar com uma mudança de
consciência que passe a privilegiar a locomoção em massa em detrimento
do veículo particular. é o que espero para o futuro.
(atualização de texto publicado originalmente em 12 de setembro de 2013)
(atualização de texto publicado originalmente em 12 de setembro de 2013)
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